É preciso encontrar novos meios de preservação da intimidade individual e do sigilo de dados na sociedade superconectada
Ao final dos anos 80, o teórico “pós-moderno”
Paul Virilo assinalou que toda invenção tecnológica acarreta o
surgimento de uma nova forma de desastre. Com o advento do balão de
passageiros, vieram as tragédias aéreas; o aquecimento a gás propiciou o
surgimento da asfixia doméstica; o atropelamento começou com as
carroças.
No universo da cultura digital, a radicalidade
dos sinistros decorrentes de novas tecnologias atinge patamares insanos.
E aí não falamos só de efeitos desastrosos pontuais, como o vírus que
embaralha textos no computador ou o banditismo cibernético. O maior e
mais profundo dos desastres da era cibernética é, na opinião de muitos, a
destruição da privacidade. Uma tragédia que prejudica os indivíduos e
oferece perigo a empresas e governos.
Hoje, bilhões de pessoas estão expostas pela
hiperconexão e pelo compartilhamento da existência social em aplicações
de relacionamento. Aplicações que, obviamente, embutem algum modelo de
negócio baseado exatamente na inferência sobre dados (ou cacos de dados)
que estas pessoas lançam ao navegar na rede.
Exemplos deste novo desastre não faltam no dia a
dia. O cartão de fidelidade que usamos no supermercado permite ao
comerciante saber que todo dia 10 o cliente X adquire uma garrafa de
uísque Y. Juntando este dado a outros, é possível deduzir que quem
compra esta marca de uísque pode também adquirir um apartamento de
praia.
Em seu livro “O Poder do Hábito”, o jornalista
norte-americano Charles Duhig relata o episódio em que o pai de uma
adolescente procurou a empresa megavarejista “Target” para reclamar que
seu departamento de marketing direto estava enviando conteúdos
impróprios para sua filha menor de idade. Mensagens ligadas à
maternidade e ofertas de produtos para bebês.
O gerente da loja se apressou a procurar o tal
pai para contornar a queixa. Precisaria, para tanto, explicar que um
sistema robótico de algoritmos, ligado ao big data da empresa, cruzava
milhares de indícios desconexos e signos não estruturados para inferir o
nível de propensão à gravidez de mulheres no mundo virtual.
O gerente iria contar ao pai que este modelo de
big data já havia provado, na Target, um índice de assertividade
beirando os 90%. As massas de informação disforme acionadas pelo tal
“analytics”, iria argumentar o rapaz da loja, incluíam desde os ingênuos
“likes” que a filha daquele senhor havia distribuído nas redes sociais,
até seus mapas de navegação, suas preferências de compra, suas
perguntas ao Google.
Mas ao ser procurado pelo gerente, o Pai, já bem
mais resignado, em vez de ouvir as desculpas da Target foi logo, ele
mesmo, se desculpando. É que, após ter reclamado à empresa, acabara de
descobrir que a jovem filha de fato estava... grávida!
Muito mais radical que o “Grande Irmão”,
profetizado pelo clássico de George Orwell de 1948, o fenômeno deste
novo monstro que a tecnologia chama de “grandes dados”, tem a capacidade
até de projetar, para cada um de nós, um novo tipo de futuro potencial.
Um futuro artificial, estatisticamente provável, e
expresso através das inferências dos novos sistemas analíticos capazes
de definir nossas “propensões futuras” e passar a direcionar o nosso
enquadramento a elas.
Por outro lado, ninguém irá abrir mão da nova
sociedade e seria ridículo esperar um retrocesso em função de antigos
valores, com a individualidade “sagrada”. Mas reconhecer a fatalidade do
fim da privacidade – tal como a conhecíamos até muito recentemente -
não significa nos resignar a sermos vigiados e monitorados à nossa
revelia e sem qualquer resistência possível.
Perdemos a velha e boa privacidade da sociedade
analógica, das grandes multidões de pessoas anônimas, e agora precisamos
inventar outra forma de privacidade, compatível com o novo modelo de
tecnologia ubíqua e pervasiva e em que todos estão submersos.
Por mais difícil que seja conseguir alguma vida
exclusivamente pessoal na rede, devemos rejeitar a ideia de um mundo sem
direito à intimidade, assim como o setor aéreo rejeita abrir mão de uma
remota possibilidade de sobrevivência diante dos seus mais terríveis
desastres.
A cada voo comercial, em qualquer ponto do no
planeta, a horda de passageiros é submetida a uma aula, sempre repetida e
monótona, sobre como usar as máscaras de despressurização e os assentos
que flutuam, em caso de mergulho da aeronave nas águas revoltas do
oceano. O acidente é para lá de fatal e a solução ofertada é
fraquíssima. Mas acima de tudo está o conceito, a ideia de uma
contingência indispensável e lastreada na crença de que sempre haverá
uma esperança se estivermos devidamente prevenidos.
O caso da privacidade cibernética e da
integridade dos dados exige da indústria de TI um paradigma de
perseverança semelhante. É desafio do setor de segurança da informação
não apenas criar as criptografias (os algoritmos de barreira que,
teoricamente, devem evitar a queda livre do “avião da privacidade” pelo
simples fato de ele estar suspenso no ar). Precisamos também fomentar
condutas que tenham a intimidade e o sigilo como premissas vitais, e que
sejam repetitivas e reproduzidas por todos.
Fomentar condutas, quer dizer, fazer que nossos
sistemas “impeçam” o usuário de espalhar seus dados (ou os dados
empresariais que eles acessam) de forma indiscriminada e ingênua.
Induzi-lo, através de requerimentos de software, ao comportamento
digital responsável.
E ao lado dessa tecnologia impositiva, é nosso
papel projetar estratégias abrangentes para todo o ciclo da segurança. O
que inclui indicar às empresas que o funcionário deve assinar termos de
adesão se comprometendo a algo equivalente a “atar cintos” e a “não
fumar” quando navegando na rede da companhia.
Resulta de tudo isto que combater na luta pela
privacidade exige, em alguma medida, o ato paradoxal de se monitorar os
hábitos de navegação das pessoas e disciplinar o modo como os indivíduos
(e aqui falamos mais especialmente dos internautas empresariais) se
relacionam com as redes.
Conscientizar funcionários de que seus passos são
acompanhados por um sistema lícito de controle que quase tudo vê é, por
incrível que pareça, uma medida essencial para se mitigar a exposição
involuntária de informações pessoais que possam ser empregadas contra a
intimidade destas próprias pessoas ou contra o sigilo e integridade dos
dados corporativos.